Conheci Kelly Priscila na faculdade onde eu dava aulas. Sempre parava pelo guichê onde ela atendia para conversarmos sobre qualquer coisa e tudo mais. Sempre de bem com a vida, sorriso aberto e ligada no 220. Ela saiu da faculdade antes de mim e foi para Florianópolis. Graças aos milagres da tecnologia, essa distância não impediu de conversarmos de vez em quando nas redes sociais.
Quando soube que ela completou o Audax 200k já pedi um depoimento, até porque já tinha lido textos dela e gostado muito. Depois umas cobranças, ela me mandou o texto que segue, que posto praticamente sem alteração para não tirar a emoção das palavras.
Preparativos:
Há
muito tempo tinha vontade de participar de um Audax, mas sempre, por
um motivo ou outro, acabava procrastinando. Foi assim em abril de
2012, quando fiz a inscrição mas acabei não a efetivando pois
escolhi participar de uma corrida de rua aqui da cidade.
Quando
fiquei sabendo da prova do dia 09 de dezembro de 2012, não perdi tempo: fiz
a inscrição, paguei a taxa e tratei de me preparar.
Pedalo
desde que me conheço por gente. Há uns 10 anos, porém, essa
prática ficou ainda mais constante e, de uns três anos para cá,
pedalo todos os dias, treinando triatlhon e
também utilizando a bicicleta como meio de transporte aqui na ilha.
Depois
de fazer a inscrição, me surgiu a dúvida: 100 ou 200 km? Fiz a
inscrição nos 200, sendo que poderia mudar para os 100, caso
quisesse, até o dia anterior ao evento, na retirada do kit. Sabia
que tinha força pra conseguir os 200k, mas quis tirar a prova: no
final de semana anterior ao Audax,
fiz um longão
de 120 km e o resultado foi positivo. - Se deu pra fazer 120k, 80k a
mais eu consigo também – pensei.
Escolhi
fazer a prova com a minha speed,
uma Merida Road 903. Dias antes, uma super revisão, pneus novos,
estoque de câmaras de ar e pronto. A minha parte "máquina"
estava pronta.
Durante
a semana me deparei com um problema significativo, pelo menos para
mim: na lista dos inscritos, nenhum conhecido. Apesar de eu fazer
parte do mundo dos esportes, me parece que a galera da
corrida/triatlhon não se identifica muito com o Audax, talvez por
ser mais um passeio do que uma prova competitiva. Aliás, importante
ressaltar isso: o Audax é um passeio, e seu maior concorrente é
você mesmo.
O fato de completar a prova dentro do limite de tempo
estabelecido é a grande vitória. Mesmo sem nenhum conhecido, estava
animada. O meu único medo era ter que pedalar sozinha em alguns
trechos que são extremamente perigosos na ilha. Pra ajudar, uns dias
antes da prova, um ciclista foi atropelado por um carro na SC 401 e
isso, infelizmente, tem se tornado comum aqui. A cidade é linda,
maravilhosa, amo de paixão, mas infelizmente tem pouca (muito pouca)
ciclovia. Mas essa já é uma questão para um outro assunto.
Bom,
no dia anterior ao Audax comi
tudo errado. Ao contrário das provas que participo que incluem
também a corrida (nas quais como apenas carboidrato, não como doce,
não como nada que possa me atrapalhar no momento da prova), no dia
anterior ao Audax comi chocolate, pizza de calabresa, amendoim,
sorvete. Tudo errado, mas por sorte isso não fez diferença alguma.
Ainda no dia anterior, fiz um check
list das
coisas que não poderia esquecer, sendo:
- 8 saches de carboidrato em gel;
- 10 barrinhas de cereal;
- BCAA;
- Câmaras de ar reserva;
- Bomba para pneu;
- Colete refletor;
- Lanternas e farol;
- Capacete;
- Luvas,
- Passaporte (dado pela comissão organizadora)
- Bermuda
- Camisa
- Pilhas reserva dos refletores
A largada.
A
largada era às 06h30, portanto tinha que chegar com pelo menos 30
minutos da largada, para realizar o check
in na
bike. Por sorte, moro perto do local da largada e por volta das 06h
já estava pronta para o desafio. Não tinham muitos participantes,
creio que no máximo uns 250, e eis que no meio de tanta gente,
encontrei um conhecido das corridas. Fui até ele e me animei em
saber que pelo menos nos km iniciais eu teria companhia (ele se
inscreveu no Desafio 100k).
O
dia já estava clareando quando a largada foi dada. Uma largada
simples, sem muito glamour.
Seguimos pela ciclovia da Beira Mar Norte (meus locais de treino)
sentido ponte para o continente. Fiquei decepcionada, pois as bikes
passaram por baixo da ponte (uma passarela que tem anexo à Ponte
Pedro Ivo). Minha expectativa era que a Ponte Colombo Sales tivesse
uma faixa fechada para que os ciclistas pudessem utilizá-la, como
foi em outras edições do Audax,
mas nessa, não aconteceu. Mesmo assim a passagem ilha continente
foi, como sempre, muito boa. O visual é deslumbrante e vale muito à
pena.
Os 50 primeiros kilometros.
Já
no continente, seguimos pela Beira Mar de São José, onde às 07h30
haveria a largada de uma prova de corrida de rua, na qual encontrei
vários amigos já se preparando. Um grito de "vamo lá" e
seguimos nossa viagem. Nesse ponto já percebia que o pelotão dos
ciclistas começava a se dispersar: muitos ficavam pra trás, muitos
voavam na frente. Eu e meu amigo ficamos creio que pelo meio, junto
de outros ciclistas que tinham o mesmo objetivo que nós: completar o
passeio bem, dentro do limite de tempo estabelecido. Pedalamos alguns
quilômetros pela rua lateral à BR 101 e, quando paramos no primeiro
posto, o sol já começava a dar as caras. A cada posto era
necessário entregar o passaporte para que os organizadores
carimbassem com o horário da passagem (no primeiro posto entendi o
porquê do plástico que vinha junto ao Kit. Meu passaporte chegou
ensopado de suor). Aproveitei para repor as energias com algumas
frutas, carboidrato e água, muita água. Continuamos a pedalada, já
sentido de volta à ponte. Já na ilha, seguimos pelo sul com o sol
pegando forte, mas ainda tranquilos, sem nenhum incomodo maior.
Transitamos pela ciclovia da Beira Mar Sul (que é bastante conhecida
por mim e pelas minhas magrelas, já que é caminho para meu
trabalho) e nesse momento o sol começava a judiar um pouco mais.
Lembro que estávamos a cerca de 50 km, ou seja, a metade do passeio
para meu amigo, e um quarto para mim. Seguimos pela rodovia do
Campeche, e mais a frente, na entrada da rodovia que segue para o Rio
Tavares, nos despedimos: a partir dali, o trajeto era diferente para
quem fizesse o Desafio 100k e o Audax 200k.
A primeira metade.
Me
vi sozinha. Alguns ciclistas que estavam atrás de nós seguiram em
frente, realizando o mesmo trajeto que meu amigo. Meu caminho era à
esquerda, numa rodovia simples, com poucos carros, um acostamento
mediano e bastante verde ao redor. Por sorte, por ser moradora da
ilha, conheço os muitos cantinhos da cidade, e isso ajuda muito o
psicológico. Afinal, acredite: provas de longa distância são muito
mais cabeça do que corpo.
Encarei
a rodovia sozinha. Poderia parar e esperar que algum ciclista
chegasse, mas achei melhor tocar em frente. Quando a rodovia me
possibilitou enxergar a frente, vi um pontinho colorido e apertei o
pedal para conseguir alcançá-lo. Era um homem de uns 60 anos sobre
uma bela MTB, com uma camisa de um grupo de pedal daqui de Floripa.
Cheguei mais perto e puxei conversa: esse novo amigo seria minha
companhia por todo o restante do percurso. E o melhor, ele já havia
feito o Audax 300 km, ou seja, supra-sumo da experiência.
Não
mais sozinha, segui ao encontro daquilo que eu diria ser o trajeto
mais cansativo e dolorido de todo o passeio. O Belíssimo Ribeirão
da Ilha, com suas casas históricas, praias lindas e seu charme
cultural, possui também, como parte de toda essa riqueza da ilha,
alguns quilômetros de calçamento de pedras e paralelepípedos que
acabam com qualquer bicicleta speed
e com os glúteos de qualquer ciclista. Tudo bem, tudo bem, eu sabia
do trajeto e escolhi a speed
por que quis, então, agüentei calada. Mas que doeu, doeu e a
velocidade média que estava, até então, perto dos 25km/h, caiu
para os pobres 10km/h. Ali eu já sabia que o tempo de conclusão do
passeio ia aumentar muito.
Não
sei exatos quantos km de calçamento passamos. Creio que uns 16 ao
todo, sendo que 8 para ir e 8 para voltar (chegamos num ponto final
na Caiera da Barra do Sul, onde os barcos saem para a Ponta do
Papagaio e de lá, após a comprovação e reposição das energias
no posto, voltamos pelo mesmo trajeto até o início do Ribeirão da
Ilha).
Nosso
trajeto agora era rumo ao Pântano do Sul, mas antes disso, uma
parada para reabastecer as energias com algo salgado. Paramos em uma
padaria e comi uma super coxinha de frango. Nesse momento o
cronometro da bike marcava 100 km. Metade já havia sido conquistada,
mas o solzão
do meio dia mostrava bem o que nos esperava nos 100 km finais.
Última metade
Após
o lanchinho, voltamos à pedalada. Sim, o sol estava muito forte e
isso era o maior dos obstáculos.
Continuamos sentido sul, e a cada
vez que eu olhava o mar e as belezas da natureza, resgatava forças
para continuar, mesmo com o sol extremamente forte. Chegamos ao
Pântano do Sul bastante cansados (pelo sol e pelo esforço do
calçamento do Ribeirão), mas muito felizes. O cansaço e felicidade
podiam ser vistos no rosto de todos que ali chegavam também: é o
tal do cansaço que satisfaz. Nessa altura do campeonato (e do sol),
tinha até um maluco tomando cerveja. Eu fiquei com a água.
Continuamos
nossa pedalada. Voltamos pelo caminho do Pântano do Sul, passando
pelo Morro das Pedras, sentido Rio Tavares. Foi um caminho muito
cansativo. Quando chegamos à Lagoa da Conceição, o corpo sofria um
pouco: o sol não dava uma trégua! Paramos, compramos água gelada,
tomamos carboidrato e fomos encarar a subida do Morro da Lagoa. A
subida foi tranqüila, a descida melhor ainda. A Praia Mole estava
lotada, mas o transito de carros não estava tão ruim. A descida da
Barra da Lagoa foi deliciosa: 75 km/h de puro ar na cara e muita
disposição de viver.
Devia ser aproximadamente umas 14h (não lembro precisamente o horário), quando seguimos pela rodovia da Barra da Lagoa, sentido Moçambique – Rio Vermelho. Creio esse ter sido o trajeto mais eterno de minha vida, mas vencemos também. Ao chegar ao Rio Vermelho paramos em uma pseudo loja de conveniência que tinha de tudo: desde lustre até banana. O lugar era bem feio. O banheiro tinha duas portas: uma de vidro e uma de madeira que dava pra cozinha. Fiz xixi olhando pela porta de vidro, torcendo que ninguém passasse por ali. Engraçado que enquanto eu estava no banheiro, a dona do pseudo estabelecimento bateu na porta de madeira e queria que eu abrisse para ela colocar a toalha de mão. Coisa de louco.
Saímos
de lá vivos, já que a água gelada era boa, e carregamos conosco
mais dois amigos que também estavam reabastecendo as energias no
local. Eram dois garotos novos, sendo que um já havia concluído o
Audax
200k e o outro estava tão ansioso quanto eu para completar o
primeiro.
Continuamos
nossa pedalada, agora em quarteto. O sol, adivinhem: castigava!
Quando
chegávamos perto do Ingleses uma ambulância passou por nós,
sentido contrário. Ninguém falou nada, mas tenho certeza que todos
nós, por dentro, rezamos para que nada de ruim tivesse acontecido
com algum ciclista.
Quando chegamos ao Ingleses, um estouro em uma das bicicletas fez acabar com o sonho de um dos amigos que me acompanhavam. A corrente da bicicleta do garoto que estava ansioso para completar o primeiro Audax estourou, e a prova acabou ali para ele. Por sorte, o carro da organização, que vez ou outra passava por nós, estava ali por perto e o levou até o próximo posto.
Quando
chegamos em Canasvieiras soubemos que a Ambulância que havia passado
por nós, infelizmente, estava a caminho do resgate de um ciclista
que estava parado, descansando, quando um bêbado assassino, armado
de seu carro, bateu contra ele. Por sorte nada de grave aconteceu com
o ciclista. E provavelmente o bêbado deve hoje andar solto pelas
ruas, como acontece em quase todos os casos de atropelamento aqui na
ilha.
Nesse
posto os participantes já estavam muito animados e comigo não era
diferente. Faltavam pouco mais de 30 km para o final do percurso. O
sol, apesar de ainda forte, já não judiava mais tanto. Continuamos
sentido Jurerê Internacional (último posto), e o trânsito nesse
momento estava bastante intenso. Saímos do posto por volta das 17h,
e fomos sentido SC401, local onde são realizados muitos treinos
diários, mas que, infelizmente, (e por total descaso dos órgãos
competentes) não há infraestrutura para tal. A volta foi tranqüila,
apesar do forte movimento de carros voltando das praias do norte.
Quando chegamos perto do local de partida, percebi que a corrente da
minha bicicleta estava bastante larga e o cambio parecia estar
desmontando, talvez pelo efeito do Ribeirão da Ilha. Por sorte,
só percebi isso quando faltavam menos de 400 metros para o final.
Sorte, pois, como disse antes,
o psicológico manda e muito.
Terminei
os 200 km em 11 horas e 26 minutos, abaixo do tempo esperado para
conclusão do percurso. Minha ideia era conseguir abaixo das 10
horas, mas os obstáculos do Ribeirão da Ilha e o sol forte me
impediram de conseguir. Para o Iron
Man, que
pretendo fazer em 2014 ou 2015, a média feminina que pretendo
seguir, de conclusão da parte da bicicleta, é de aproximadamente 7
horas. Claro que são situações diferentes: bike diferente, solo
diferente, treino diferente, clima diferente, trajeto diferente,
quilometragem diferente. Mas já sei que tenho que melhorar bastante.
O que achei da prova:
Prós:
- É um passeio e não uma prova. Você está ali para vencer a si mesmo. Eu venci;
- Ter conseguido o Brevet dos 200k me dá o direito de participar no de 300k. Talvez eu encare.
- Floripa dispensa comentários. O cenário da prova é digno de aplausos e sorrisos, mesmos quando os glúteos doem no calçamento do Ribeirão da Ilha.
- Você fará, com certeza, mais amigos;
- A sensação de conquistar e superar seus próprios limites é boa demais.
Contras:
- Não senti segurança nenhuma. Existem alguns trechos da ilha que são muito perigosos e que são contemplados pelo trajeto do Audax. Estou acostumada com provas de corrida e triátlon onde existe sinalização, alteração de transito e staffs que trabalham para o evento ocorra sem maiores problemas. Senti falta disso, pois o tempo todo pedalei como se estivesse pedalando por si mesma, como faço sempre.
- Paguei quase R$ 200,00, ganhei uma camiseta, uma medalha e um certificado. Acho que os organizadores das provas (e isso se encaixa perfeitamente aos organizadores de provas de corrida a pé, também) devem repensar os valores cobrados.
- Faltou um local pra tirar foto com a medalha, um portal de largada e chegada. Nessa edição, não tinha nada disso.
No mais, vale muito a pena. Se você mora ou conhece Floripa, sabe do que estou falando. Se não conhece, vai se surpreender com nossa ilha maravilhosa.
Como
disse antes, pretendo no ano de 2014 ou 2015, participar e concluir o
Iron Man.
São 3,800 mts de natação, 180km de bike e 42km de corrida
(maratona). O Audax
me serviu como base para as dificuldades que poderei encontrar no
caminho.
Corri
duas maratonas de Santa Catarina (2011 e 2012), e várias outras
provas de menor distancia. Sou persistente no que faço e sei que, em
muitas vezes, a minha teimosia e força de vontade fala mais alto
quando o físico já não agüentar mais falar. Acho que isso é o
que muda tudo: a garra, a vontade, a persistência. Por que por mais
que doa, por mais que canse, por mais que seja sofrido, nada paga a
sensação de ter conseguido chegar lá. E como já diz o ditado: o
sofrimento é passageiro, a conquista é permanente.
Um
grande abraço.
Kelly Priscila Franzoni
Meu
sonho é concluir um IronMan e
pretendo alcançar esse sonho em breve.
Para saber mais:
Audax no wikipedia
Site oficial do Audax Brasil
Site oficial do Audax Frances (que deu origem a série)
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